Posfácio
Julio Urrutiaga
Almada
Inevitável, será ou seria, começar esta apreciação, citando ou se exercitando como um felino, depois de tanta embriaguez literária ou à moda Baudelaire, qualquer embriaguez que nos salve desta tacanha quase existência ou reflexão disforme. Mas, nada nos salvará. E acredito que só a felina vontade de impor-se nos impostará a voz até onde seja devido ou buscado. Começo a felinear pelo livro, bem fodido, às 6 da manhã. De quem não deseja oferecer-nos a poesia como comida rápida, devemos esperar Hemistíquios conectando-nos à montanha-russa do poeta feito à forja do dia a dia e respirando tradição que luta para reinventar-se. Nem poeta certificado de escritório, nem transeunte que se esqueceu em alguma esquina já tomada pelos donos da terra. Poesia viva reivindicando soar como música e ser vista como baile. E escuto do Poeta os primeiros versos a girar em meu oficio de leitor:
nunca fui capaz de ter um plano nesta terra redonda e [chata sou
aquele que prefere a madrugada e a cada minhoca [uma enxadada a fumaça desenha
meu destino ao que se des [tina este menino a vida sua diária e meu olho ri
surreal ao infernal [caminho do sol desolado me amarro à pedra do acaso e me
atiro neste mar de nada onde só me restam as palavras
Não se detenham no que pareceria narrativa ou confissão. Não
há isso em forma crua. Ouçam a música, como agora ouço Libertango, de
Piazzolla, e outros versos entram em minha percepção: pinga noite fugidia que
culpa tenho se não me vejo e [ninguém lê o que me escrevo noite pontuada e
afoita como as [redações da quinta série ai a intempérie noite cheia de
vírgulas [outrora foi boite agora é o boi mal digerido cores fábulas nadas in
[cisos e mais Testemunho o grito de usar todas as armas para que a poesia se
signifique. Ouça, dance, grite, permita-se ao transe. cumpre solfejar o
instinto forjar as armas sísmicas nas palavras nunca dantes manejadas porque
extintas calar a gente cala cínico silêncio para fazer aqui um reino trágico
(...) Por onde anda a palavra amor é onde o ato falta, pois o amor não é
palavra nem sentimento, é ato e compromisso. e era o meu sol a alma pronta o
riso raro em raios a cara afronta pois era o passado no presente o amor O
caminho da cafeína rumo a um céu eclipsado de puro êxtase e anestesia vence a
chuva rude, porém parca dos barbitúricos providenciais. Libertango me mostra o
ritmo frenético, porém avassalador dos tecas arremessando seus dardos
explosivos, na velocidade da luz mediante os cegos, na velocidade do som frente
aos distraídos com tímpanos arrebentados pelo cotidiano e na velocidade da dor
frente aos não empáticos. Qual é azozoa? Que mais poderemos fazer do húmus
material da espécie ajoelhada diante de qualquer farsa e atemorizada quando há
tragédia. A dor é tão mole e pouco empática, o gato ronda, desconfia e sabe:
Você ainda não está embebido da verdade. Homem submerso em sua profundidade
irresoluta, onde a cabeça não aguenta o golpe no peito e o coração se detém por
não ter onde ancorar-se. Exploda as palavras e verás o cheiro da pólvora dos
sentidos. Sentidos, semântica da unha e da carne e do ronronar, dialeto entre
mundos, denso e sutil. Aqui se trata de pôr o dedo na ferida. De falar um
idioma estranho que está entranhado na dor de toda espécie. Não é a carta de um
suicida. É a carta de um modus operandi. Felino de pelo e pelo tempo que
houver. Suicídio e hedonismo. A vida mesmo aquela pegada pela crina e destinada
a dar-nos todo o prazer que exista nos gera mais frustração que satisfações. Ya
en la filosofía contemporánea, destaca Michel Onfray, que propone el hedonismo
del «ser» en vez del «tener», disfrutando así de la existencia: oler, escuchar,
degustar... y considerar las pasiones como amigas. As paixões nos renovam ou
nos exaurem? Como saber se o corpo se move em vida ou para a morte? Escutem,
mirem, embriaguem o paladar, embriaguem a pele. Sejam donos amorosos dos
sentidos e não da falta de sentido de ser dono de qualquer coisa. A rouquidão
provocada pelo amor que não nos escuta. Nesta cópula lúdica de viver pela
metade, observamos às três da madrugada as pequenas mortes farsantes
dizendo-nos vida e vidas e vida.
Ser rei na estiagem cala a aragem da palavra e nada Vale
mais do que o silêncio meu seu e óbvio do vento Copos que se esvaziam na meia
noite do mundo eliminam, corpos indesejáveis e nos extasiam. Os cães calados
impedidos de salvarem o nosso direito de gritar com gosto ou a esmo. Há tantos
gritos neste mundo e tão pouco silêncio para acalentá-los. pois que uma morte
nobre sempre nos consome o sono é uma vida de um dia sem esperança Neste caderno,
os versos que vigilam o leitor, pretenso vivente, cravam suas felinas unhas,
retendo-nos dentro do poema. Retidos, escutamos a esperança comendo-nos a
ruína. A ruína deste corpo que quando nosso, já não é nem sombra do sonhado. A
ruína desta alma que quando liberta, fecha com veemência seus olhos e quer
apagar a memória de tanto esvair-se em fluidos e lamentos. Mas nem tudo é
estadia entre dois mundos. Há a hora melódica em que imersos nas catadupas da
inocência, a música de o caderno felino do suicida, nos dedilha as cordas da
inquietude natural e bailamos como gatos e gotas de algo fresco, explosivo e
transportador. E confesso ainda ando pelo Trecho XX e o caminho me puxa mais
para dentro do poema. As formas da natureza e o inconsciente em sua queda de
braço enquanto de consciente só resta um corpo anestesiado e o rondar de gatos:
as águas estão mortas e o vento estanca o chilro num breve apenas breve alarido
emudecido que choca
Ao entrar no poema, confesso, penetrei o labirinto
procurando desvencilhar-me do Minotauro. Amarrei o fio do meu trânsito poético
ao arsenal de minhas certezas. As mesmas que já estão abaladas e a cada novo
verso, um espelho mostra-me: já sou o Minotauro. Os delírios místicos se
aproximam na tentativa de vencer o prosaico chamado vida. Só a química pode,
ainda que ilusoriamente, salvar-nos dos golpes da degeneração física. O
hedonismo em certa medida é viciante e pode significar uma aposta mais alta com
menos possibilidades de ganho. Mas o felino que nos devora com seu exemplo
significante, não é um hedonista qualquer: ele sabe onde pisa. Este livro, nos
recomenda Dionísio com um volume entranhável de Libertango a vociferar: Poesia
como velocidade, chama em êxtase e cheiro de enxofre, mas aí estão os gatos
para que o Diabo entre na festa, mas não destrua o espetáculo.
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